quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Sem aviões nem carros nem algazarra de crianças!

            Nunca me sentira assim. Anacoreta. Avassalador, o silêncio. Barrei a fatia de pão com manteiga e admirei-me do som que a faca fazia. Nunca me fora dado ouvi-lo tão nitidamente! E o cair gorgolejante do sumo no copo.
            Imponente, o sossego da casa! Um silêncio a que já não estava habituado. Não sinto, porém, necessidade das sirenes das ambulâncias nem dos ladrados dos cães ou do arrulhar das rolas. Não oiço aviões nem carros nem vizinhos nem algazarra de crianças. Parece-me impossível estar em Penge. A metrópole e o seu bulício ficaram… longe. Aqui, até o céu é azul!
            Vi pela janela uma ave poisar num dos ramos, nu como todos os outros neste Inverno a sonhar já com a Primavera que tarda. Pombo? Talvez. Não conheço a fauna daqui, o mistério dos bairros suburbanos da grande metrópole londrina, em que o rural se casa à perfeição com o urbano. Admirei-me de a ver sozinha, quando, no jardim de minha casa, as felosas pretas e os fuinhos e as rolas andam aos pares; até na periferia do olival aonde levo o Spike a passear, há uma família de melros!
«Viste como eu me safei?»
            Apareceu-me agora um esquilo cinzento a saltar mui agilmente de ramo em ramo, milagre de equilíbrio. Tem na boca um pedaço grande branco. O petisco que logrou apanhar. Saltou, saltou, até que o foi guardar na ponta da árvore com muitos raminhos entrelaçados. E afastou-se uns metros, para se lamber. Senhora a aperaltar-se, diria. Eis senão quando, há dois outros que vêm de baixo. Lá vão de ramo em ramo. O primeiro espreita-os. Sente que estará em perigo o petisco. E está. Foi descoberto. Engalfinham-se em disputa, o petisco cai, sem que se apercebam para onde. Eu estou a vê-lo bem, no chão. E o esquilo, agora, parece lamentar o sucedido. Outro petisco virá, decerto. Não. Afinal, o seu desinteresse era meramente aparente, para que os outros não desconfiassem. Sorrateiramente, foi descendo de mansinho, passeou pelo jardim aos saltinhos e… foi direito ao petisco caído! Olhou para mim, como que a dizer-me «viste como me safei?» e esgueirou-se para um canto, a saboreá-lo às escondidas, aqui ao pé da janela. Abençoado!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado no Renascimento (Mangualde), nº 724, 1 de Fevereiro de 2018, p. 11.

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