sábado, 5 de agosto de 2017

«Turbulência na Academia do Amor», de Júlio Conrado

             É sempre difícil escrever algo de válido acerca de um escritor com tantas provas dadas e, ainda por cima, conceituado crítico literário. Não há – claro! – nada a apontar de errado, quer na estrutura da obra, quer na limpidez rigorosa da linguagem, cuja propriedade  domina como poucos.
            Também não é de bom-tom contar-se a história ou as histórias que se entrelaçam neste romance que tem por pano de fundo uma Academia literária, a do Amor, criada sob a égide do poeta latino que escreveu nada mais nada menos do que A Arte de Amar. Por sinal, não podemos exigir que toda a gente saiba Latim – embora novo movimento agora surja a reabilitar uma língua dita «morta», mas que foi a «mãe» do Português. E os senhores que resolveram baptizar a dita Academia ou se distraíram ou quiseram chamar a atenção, como aquele restaurante que, de propósito, de chamava «O Rei dos Fangos». É que o senhor Ovídio, o tal da Arte de Amar chamou-se, à boa maneira dos cidadãos romanos, com três nomes: o praenomen, Publius; o nomen, que era o nome de família, Ovidius; e cognomen, Naso, um nome geralmente de significado concreto, como é este, que, na origem, se dava a quem tivesse o nariz comprido. Que ele meteu o nariz numa arte em que muitos necessitavam de ser iniciados, lá isso ele meteu. E que na Academia do Amor a iniciação era obrigatória, isso está fora de questão, como o está a entrada em qualquer Academia, por mais estranha que seja.
            Tudo se passa, por conseguinte, em época de eleições para os corpos directivos da tal Academia e era preciso angariar votos; neste caso, é o autor, supomos nós, que é assediado para se candidatar a membro, uma vez que escrevera uma obra susceptível de entrar nos cânones exigidos para ser membro. Vem, pois, alguém aliciá-lo, prometendo-lhe mundos e fundos, como é de jus em circunstâncias idênticas, sob condição de ele votar na lista em formação para derrubar a que estava no poder há um ror d’anos e que, por isso mesmo, acabara por lançar a Academia no habitual marasmo de quem está há muito num cargo, de pedra e cal, e se julga dono e senhor da verdade toda. O que toda a gente sabe. Na Literatura. Nas Academias. Na Política. No Futebol.
            A trama é, pois, essa, com ligações à Inglaterra, onde a Academia tem raízes e grandes influências. E o pobre do autor lá se vê metido em palpos de aranha e procura mostrar a sua valia, se quer singrar na vida e ser alguém mundialmente conceituado. Por isso, de permeio vêm maravilhosas histórias, das quais a mais entusiasmante – e o próprio académico aliciador o reconhece por mais do que uma vez – a história (por sinal, verídica) do contabilista que andou pelos Brasis em grande aventuras e desventuras é prato forte que jamais se esquecerá. Também, a determinado momento, surge a de uma nadadora, verídica também ela, de carne e osso, campeã olímpica, protagonista de uma história de amor, que esteve, tal como o contabilista, presente no dia em que Teolinda Gersão apresentou a obra (23 de Abril de 2015).
Da esquerda para a direita; a nadadora, Teolinda Gersão, o Autor e o contabilista.
            Os diálogos acerca do que deve ser a obra literária perfeita, os ingredientes a que se deve lançar mão são um mimo:

            «Porque não escreve, por exemplo, sobre os seus amores? A sua primeira vez? Os engates juvenis? As amantes, se as teve? Ou nesse particular correu-lhe tudo bem? Nada há a corrigir? Dê a volta por cima. Escolha primeiro, escreva depois» (p. 156).

            E eu imagino Júlio Conrado a gozar, à medida que escreve, com um prazer danado de ridicularizar a situação. Não. A situação política directamente, não. Indirectamente sim, porque estou bem em crer que o aliciamento para entrar numa lista ou num partido político poucos ingredientes terão de diferente do que os usados pelo senhor que pôs na cabeça a necessidade urgente de derrubar o amorfo status quo vigente na Academia do Amor.

            E, por isso, o Autor até mostra que é capaz de satisfazer os requisitos:

            «Os rebentos de verde pespontavam a musculatura espectral, na sua quase nudez, das árvores do jardim da Estrela, próximo da casa de Isaura. Os pássaros entregavam-se à chilreada anúncio da Primavera em desordem acústica, como no ensaio prévio ao grande concerto em que a prioridade está na afinação dos instrumentos» (p. 161).

            E nacos de prosa como este aparecem aqui e além, quando é preciso, que o autor não quer deixar os seus créditos por mãos alheias e, já que se meteu nessa de poder vir a ser membro da tal Academia, ele que tinha provas dadas no concreto do seu quotidiano, não queria deixar de mostrar que também as tinha no labor da escrita.
            Acabamos por não saber que lista, afinal, ganhou. Ou se esse desfecho está por lá metido nas entrelinhas ou vem mesmo expresso acaba por não interessar ao leitor, perdido que andou no emaranhado de histórias, que o seduziram do princípio ao fim, diferentes umas das outras.
            Crítico literário (ia eu a dizer: «por profissão»), Júlio Conrado não poupou uma alfinetada, ao transcrever a passagem de uma crítica:

            «[…] uma análise cuja ênfase recaía sobre o fundo romântico do texto em que realidade e ficção alternavam para se completarem através de linguagens pulsionais em trânsito do estado depressivo para a mentalidade positiva. Pela fácil e escorreita utilização dos mecanismos de captação da atenção do leitor…» (p. 176).

            Eloquente! E facílimo, afinal, de captar no seu sentido mais profundo.!...
            E agora, que andamos numa de «guerra» aos anglicismos que snobisticamente enxameiam o nosso quotidiano (no Concerto de Verão da Sinfónica de Cascais – imaginem! – o título, no programa, era «Cascais meets Jazz!»…) e que os senhores ingleses oficialmente se borrifaram para a Europa, ainda que os seus jovens (e os menos jovens…) adorem vir beber uns bons copos a Albufeira, enquanto o brexit não se tornar efectivo, eu não posso deixar escapar uma passagem de mestre. É que, na carta que William Smith, o manda-chuva da TRAR (The Royal Academy of the Romantism), em que a APON (Academia Publius Ovidius Naso) está filiada, escreveu ao «querido discípulo Berto Aguiar», a certa altura não deixa de se lamentar:

            «No entanto, fique sabendo: hesitei em seleccioná-lo para ser publicado. Desde logo, não abordava um autor romântico inglês; o escritor estudado era nem mais nem menos do que um dos paladinos da escola realista, em França, e sabe o que nós, Ingleses, pensamos dos franceses» (p. 170).

            Dos Franceses e dos Europeus continentais em geral, acrescento eu. Se calhar, até nem pensam nada, porque não os estudam, não lhes conhecem as línguas e já se esqueceram, há muito, de uma ‘coisa’ que se chamou «Bloqueio Continental», em que lá os comiseradores portugueses acabaram por lhes dar a mão e iam ficando sem o corpo todo!... Essa é, porém, uma outra conversa, mas que – tenha o Autor pensado nisso ou não – vem mesmo a calhar, a propósito da dependência em que nos querem embrulhar.
            Editado pela Âncora, na colecção Holograma, com ISBN 978-972-780.491-7, com data de Março de 2015 e 184 páginas, Turbulência na Academia do Amor constitui, sem dúvida, um bom antídoto contra o dolce far niente em que somos tentados a deixar-nos amodorrar nestes calorosos dias estivais. Há que ler!
                                                                        José d’Encarnação

P. S.: Tive ocasião de me referir à apresentação da obra em 24 de Abril de 2015: http://notascomentarios.blogspot.pt/2015/04/a-turbulencia-na-academia-foi-explicada.html

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