quarta-feira, 5 de abril de 2017

Rendibilização ou… estupidez?

             1. Recebi a informação de que a ‘consulta – 30 m’ estava marcada para o dia Y. Achei piada: eu iria ter direito a uma consulta de 30 minutos e isso vinha especificado na informação. Trinta minutos! Pasmei, porque o meu médico demora comigo habitualmente um quarto de hora, se tanto; e, quando precisa de mais, porque algo de estranho aconteceu, ninguém fica ali pespegado a olhar para o relógio.

            2. Muitos de nós terão recebido o vídeo em que a menina responde à professora que o que gostava mesmo de ser era um smartphone, porque os pais gostam muito do smartphone; jogam muito no smartphone e nunca brincam com ela; porque a mãe nunca se esquece de carregar o smartphone, mas, às vezes, esquece-se de lhe dar comida a ela; porque o pai dorme com o smartphone na almofada e nunca dormiu abraçado a ela…

            3. Muitos de nós terão também recebido o vídeo de um casal à mesa. Pode aceder-se a ele no youtube: «A última vez que acabou a bateria». A cena começa quando, chateado de todo, o marido se apercebe de que a bateria do smartphone acabou e, para matar o tempo e não ficar ali feito bacoco, atira de vez em quando uma pergunta: «Você pintou o cabelo?». «Sim», responde a mulher, «há quatro semanas». E, pergunta lenta atrás de pergunta lenta, verifica-se que o homem não sabe que a mulher há muito mudou de patrão; que morrera a amiga íntima dela (a cujo velório ele próprio assistira, mas nem se lembrava). E o clímax atinge-se quando um catraio aí de uns quatro anos vem pedir à mãe para continuar a brincar mais um bocadinho e o senhor, franzindo o sobrolho, pergunta a medo: «É meu?... E quando foi?». «Da última vez que acabou a bateria!», responde a mulher.

            4. Entro na pastelaria aonde vou buscar o almoço. E pasmo: um senhor, de auscultadores de alta-fidelidade, come a ver um filme no tablet e diante dele estacionam, bem à vista, dois smartphones…

O senhor, a comida, o fiklme e os dois telemóveis...
            5. O António esteve meses a fio num ambiente asséptico, após implante da medula. Entre a vida e a morte. Tive, enfim, ocasião de o abraçar, após, ao longo de meses ter contactado com a família e os amigos a saber dele e, finalmente, já o ter conseguido apanhar pelo telefone. Pois também em relação a ele, foi o abraço «tás com excelente aspecto, homem, folgo muito em ver-te, que bom!» – e desapareceu pouco depois, porque outra tarefa urgente o esperava.

            E fico a pensar se isto é rendibilizar o tempo, aproveitar todos os minutos ou, ao invés, a mais pura estupidez. Será que já nos esquecemos de… viver?

                                                        José d’Encarnação

Renascimento (Mangualde), 1 de Abril de 2017, p. 11.

4 comentários:

  1. Teresa Silva 5/4 às 8:04
    Li há algum tempo um livro inquietante: "Sociedade do Sesassossego". Não tenho presente o nome do autor, sei que é um filósofo moderno, mas ainda hoje tenho momentos de reflexão sobre as inquietações que me deixou!

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  2. Liliana Sintra 5/4 às 9:21
    Gosto tanto de o ler, Zé.

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  3. Julieta Lima 5/4 às 18:47
    Gosto muito de ler as suas crónicas. Bj grande

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  4. Edgar Valdez 5/4 às 22:45
    Caro Zé Manel: estas crónicas dizem-nos muito sobre a «modernidade» dos tempos que correm. Há que aguardar e esperar por melhores dias. Abraço, Edgar.

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