terça-feira, 15 de novembro de 2016

As botinhas de criança

            Estava uma manhã morrinhenta e eu olhava pró chão, a caminhar. De repente, as botinhas! Jaziam ali, uma ao lado da outra, arrumadinhas, protegidas pelo tronco nodoso do ulmeiro em fase outonal de folhas amarelecidas. Pequeninas, seriam de um bebé de meses, a quem deixaram de servir, e a mãe veio pô-las ali, por onde tantos passamos no dia-a-dia. Talvez a alguém pudessem servir. Delas se exalava um hálito quente de ternura, na morrinha fresca desse final de manhã. Não ousei tocar-lhes, porque meus netos já são grandes e meus sobrinhos-netos também. E veio-me de imediato ao pensamento Augusto Gil: «… e noto, por entre os mais, os traços miniaturais duns pezitos de criança… E descalcinhos, doridos…a neve deixa inda vê-los…». Neve, aqui, não há. Crianças descalcinhas, isso sim. E eu fico na esperança de que alguém, minutos depois, horas depois, amanhã, passe ali, pare e diga de si para consigo «destas botinhas eu preciso»…
            Estiveram lá dois dias. E choveu. Não sei se o varredor as levou, se mesmo alguém que delas necessitava. Oxalá tenham servido. E louvei o gesto de quem ali as deixara, à vista de todos, na esperança de acalentar um conforto.
            Eu fora, dias antes, à loja social que a Junta de Freguesia decidiu abrir para receber roupas, calçado, ‘coisas’ da casa de que os fregueses já não careciam e ali punham à disposição de quem os quisesse vir comprar. «Comprar», escrevi. Nem que apenas por um euro ou cinquenta cêntimos. Ao que é oferecido nem sempre, infelizmente, se dá valor. Levámos sacos com muita roupa e calçado que já não servia e ainda estava em bom estado e poderia ser agasalho de quem não tem. Dessa dita «classe média» envergonhada, por exemplo, em que marido e mulher ficaram sem emprego e há filhos e até netos para sustentar e casa para pagar e prestações a vencer e nem vinte cêntimos sobejam para matar a fome…
            Tinham bons atacadores as botinhas de criança. Estava tudo muito bom para voltar a ser usado, como, entre os nossos amigos, trocamos amiúde roupinhas de bebé e até as caminhas e tanta coisa que apenas serviu pouco tempo e agora tanto jeito dá! Minha filha até o leite – que tinha em abundância – partilhou com a amiga que o não tinha – e eu ganhei uma «neta de leite»!...
            Sensibilizaram-me as botinhas. Senti-me mais cidadão numa sociedade em carência… e em solidariedade crescente! Benza-a Deus!

 
                                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 696, 15-11-2016, p. 11.

 

9 comentários:

  1. Margarida Lino
    15/11 às 17:45
    Meu amigo, fiquei comovida com a tua cronica. Obrigada por seres o ser humano que és. Bem hajas, beijinho!

    ResponderEliminar
  2. Íris Brás 15/11, 14 h
    Lindo de louvar, oxalá tenha servido a alguém. Um bonito exemplo. As coisas estão boas e deixam de servir tão rápido e têm tão pouco uso! Vejo isso pelo meu filho. Cumprimentos, professor!

    ResponderEliminar
  3. Joao Paulo Gomes 15/11, 15 h
    E de repente recordei-me de um amigo que já partiu, que tinha o hábito de colocar as "barbatanas" no muro que rodeava a sua casa. E digo barbatanas pois o meu amigo calçava XXL...44 e afins sempre para mais e nunca para menos. Mesmo sendo tamanhos pouco comuns, o que é certo é que nunca ficavam no muro de um dia para o outro. Eram sempre 4 e 5 pares de cada vez e quase novos, ali o Natal acontecia em qualquer dia do ano...como devia de ser!

    ResponderEliminar
  4. Vera Goncalves 15/11, 16 h
    Obrigado por partilhar as suas palavras connosco

    ResponderEliminar
  5. Ti Costa 15/11, 17 h
    Muito obrigada por partilhar esses momentos connosco Prof.

    ResponderEliminar
  6. Paula Ferra 15/11, 17 h
    Tão lindo e tão pouco visto nos dias de hoje... Beijinho

    ResponderEliminar
  7. Bonita referência ao Augusto Gil e à sua balada da neve. Atrevo-me a deixar os últimos versos:

    Fico olhando esses sinais
    da pobre gente que avança,
    e noto, por entre os mais,
    os traços miniaturais
    duns pezitos de criança...

    E descalcinhos, doridos...
    a neve deixa inda vê-los,
    primeiro, bem definidos,
    depois, em sulcos compridos,
    porque não podia erguê-los!...

    Que quem já é pecador
    sofra tormentos, enfim!
    Mas as crianças, Senhor,
    porque lhes dais tanta dor?!...
    Porque padecem assim?!...

    E uma infinita tristeza,
    uma funda turbação
    entra em mim, fica em mim presa.
    Cai neve na Natureza
    – e cai no meu coração

    ResponderEliminar
  8. Fernanda Goncalves 6/11 às 23:43
    Mais um excelente texto que me diz muito.
    Obrigado por saber como motivar para o bem.

    ResponderEliminar
  9. Luzia Maia 16/11 às 23:50
    Na minha cidade é hábito colocar coisas que já deixaram de servir ou... (seja o motivo que for)... no passeio em cima das caixas de electricidade... e há sempre alguém que leva. Também eu já recolhi algumas coisas.

    ResponderEliminar