quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Ele pisou o risco!

           No livro de Ferreira de Andrade, Cascais – Vila da Corte, há, no final, uma série de apêndices. Refere-se parte deles a cartas de confirmação enviadas pelos monarcas aos senhores de Cascais: que sim, senhor, podiam continuar a manter o senhorio que seus antepassados lhes haviam doado. E, de quando em vez, lá se especificavam bem os limites do território doado, não houvesse por aí abusivas interferências.
            Quem estudou a Idade Média, ouviu falar em confirmações e inquirições. Confirmações eram esses documentos; inquirições eram assim a modos da ASAE, postada a ver quem tinha pisado o risco, porque adregava frequentemente os nobres darem ordens aos seus homens de passarem por aqui e por ali e mexerem nos marcos de propriedade, avançando-os para lá, de modo a, pouco a pouco, o território aumentar.
            Então em relação aos baldios, que eram aqueles terrenos que o Povo tinha para se espraiar à vontade, apascentar os rebanhos, apanhar lenha… a ganância era maior e lá iam os representantes do Povo, os homens-bons, reclamar em Cortes: «Aqui d’el-rei que o senhor nos roubou terras!». E el-rei, que nessa altura auscultava o Povo, nomeava inquiridores para tentar saber como fora. E o Povo ficava a ganhar.
            Um tema aliciante para os historiadores da Antiguidade é o estudo dos limites das províncias e das cidades romanas. Aliciante, porque sempre controverso e porque, afinal, nunca se chega a conclusão convincente.
            Sempre os povos se mataram uns aos outros por causa das fronteiras e é por isso que caem, diariamente, que nem tordos, irmãos nossos no Médio Oriente. E, nas famílias, até por partilhas se pega na caçadeira e lá vai chumbo!
            Hoje, fronteiras não há! Ou melhor, há, mas no papel, porque se instituiu o «espaço europeu», onde cada qual se movimenta como quer. Está mal, porque se trata de um exemplo péssimo para os detentores do poder. Também eles acham que podem movimentar-se como querem e que todo o território é deles, e dele podem usufruir. Não é para semear cevada ou milho ou plantar batatas, couves ou rabanetes, mas para riscarem o chão e, em vez de espantalhos ou CDs velhos para a pardalada ter medo e não comer a produção, pespegam assim a modos de uns robôs com um mecanismo de engolir moedas. Por todo o mundo assim é, e a fábrica desses espantalhos está a ganhar bué da massa e a fazê-los cada vez mais sofisticados, até comandados à distância!...
            Não adianta o Povo queixar-se, porque já não há Cortes nem, por outro lado, tem o Povo quem o possa representar perante o «Big Brother», aquele de que, em 1949, George Orwell vaticinava vir a existir em 1984, mas que veio antes e que ora ganhou tentáculos enormes, qual gigantesco polvo, tão rijo, tão rijo, que nem dá para se comer à lagareiro no restaurante aqui do bairro.
            Queixou-se o Ezequiel, um amigo meu beirão, ao chefe do departamento de trânsito do município dele. Resposta:
            – Quando o senhor compra um frigorífico, tem de saber primeiro se há espaço lá em casa para o pôr, não é? Assim é com os carros. Não se compram se não houver garagem para os pôr!
            Retorquira-lhe o Ezequiel que, quando fora para aquela casa, ele, o irmão, os tios, a famelga toda deixava o carro na rua, porque a rua era de todos e não havia ideia de garagens nem meio-garagens.
            – Mas agora é assim! – retrucou o Chefe.
            O Mário calhou a deixar a carripana com os pneus de trás menos de meio metro em cima dum risco amarelo. Foi multado.
            – Mas… eu deixei mesmo no limitezinho, amigo!
            – Está a pisar o risco, não está?
            – Está.
            Aproveitou, pois, para augurar, de todo o coração, ao amigo que nem ele nem a esposa nem os filhos nem os pais nem os avós, um dia, sejam eles a pisar o risco!...
            Estamos bem cientes: com fronteiras e com inquisidores não se brinca! E quando elas, as fronteiras, ameaçam alargar-se mais e mais, não há homem-bomba que valha!

                                                                  José d’Encarnação
                        Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 161, 26-10-2016, p. 6.

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