domingo, 6 de abril de 2014

Os 100 anos da "Sociedade" de Caparide

            Com a realização de diversas actividades, comemorou 100 anos, a 1 de Dezembro, a Troupe União 1º de Dezembro Caparidense. Tive ensejo de apresentar, na circunstância, a respectiva monografia, editada pela colectividade, da autoria de Carlos Manuel Pinto Pedro, actual presidente da direcção.
            Beirão serrano da Covilhã, Pinto Pedro por aqui se fixou desde há anos. Integrou os corpos sociais da colectividade de 1993 a 2001 e a partir de 2009. Devem-se ao seu entusiasmo a recuperação da sede, a construção do ringue, assim como a promoção de muitas iniciativa de forma a congregar a população em torno da Troupe, acção de que o livro é reflexo e manifestação.

Uma casa e uma povoação com história
            Já tivera oportunidade de saber da actividade de Troupe quando aí se desenvolveu grande interesse pelos fantoches. Chegou a haver um espectáculo a 15 de Junho de 1996 e eu entrevistei, a esse propósito, em Rádio Clube de Cascais, o seu responsável, Jorge Gonçalves. Também acompanhei o «Atelier de Teatro e Dança”, da responsabilidade das actrizes Carla Andrino e Susana Cacela, e foi nessa ocasião, por alturas de 2008 e 2009, que, ao entrar no salão, me apercebi que estávamos perante uma «casa com memória», pois houvera, da parte dos seus dirigentes, o cuidado em exporem documentação, fotografias e objectos relativos ao passado da colectividade, a maior parte deles ora cuidadosamente reproduzidos na monografia.
            Em Caparide se encontraram inscrições funerárias romanas que tivemos ocasião de estudar e, ao cimo da rua da colectividade, antes de aí se proceder a uma urbanização, tiveram os técnicos da Associação Cultural de Cascais a possibilidade de proceder a escavações arqueológicas, que levaram à identificação de uma villa romana, cujos vestígios (mosaicos e cerâmica, sobretudo) nos permitiram datá-la do século IV da nossa era. Disso o livro se faz eco na p. 63. E, apesar de haver a esse respeito opiniões contrárias, creio que poderá continuar a pensar-se ter sido o topónimo Caparide derivado da palavra romana «capparis», ‘alcaparra’, sintoma de que, no fértil vale da ribeira que lhe fica aos pés, os produtos hortícolas, designadamente este, um condimento que os Romanos tanto apreciavam, seriam particularmente procurados. «Capparitus» poderia ser o local em que abundava a «capparis». Uma investigação em aberto!

A história cascalense presente!
            Merece, pois, o livro de Pinto Pedro ampla reflexão pelas informações que veicula. Permita-se-me que acentue apenas dois ou três aspectos que se me afiguram mais sugestivos.
            Criara-se, em 1913, o Grupo União Familiar Caparidense, que constitui, de certo modo, o embrião da Troupe. Registe-se a importância da palavra «união» no contexto em que nasceu; e o sentimento patriótico que se desprende de ter sido fundada a 1 de Dezembro, data comemorativa da retoma da nossa independência em relação a Espanha. Eram os primeiros tempos, agitados, da República e havia que criar no povo um sentimento de unidade e fazê-lo despertar para os seus verdadeiros interesses, mesmo que – nesse campo das colectividades de cultura e recreio – a influência inglesa tivesse sido dominante, visível, nomeadamente, na designação de um Costa do Sol Foot-Ball.
            Importa frisar, por outro lado, que, apesar de não se encontrar exactamente no litoral do concelho, o que poderia considerar-se motivo bastante para um alheamento, nunca Caparide deixou de participar nos acontecimentos mais relevantes do concelho.
            Pormenor deveras curioso para o estudo da história da mentalidade cascalense é, a meu ver, o facto de o rancho folclórico, criado em 1942, representar «três figuras: 1ª. O Concelho de Cascais, 2ª A Praia do Sol e 3ª. Um Turista “estrangeirado”». E na marcha de abertura não se deixa de referir que «tem a Praia do Sol junto dos pés e os campos verdejantes em redor». Essa Praia do Sol é, claro, a praia de S. Pedro, a que toda essa zona estava estreitamente ligada: não havia, recorde-se, o casario que hoje há, a cortar o contacto com o mar.
            E as letras das marchas que Pinto Pedro não hesitou em transcrever reflectem, na verdade, o sentir da população, o seu pensamento dominante. Em 1952, por exemplo, a atenção vai para «o teu rio», os pinheirais e... os sapatinhos de trança! Desta tradição, aliás, se haveria de fazer gala, no corso carnavalesco de 1959, organizado pela Estoril- Sol, em que o rei foi Maurice Chevallier: os participantes no carro da sociedade caparidense foram distribuindo, durante o percurso, sapatos de trança aos assistentes!
            Um outro apontamento: Caparide estivera presente, na Páscoa de 1943, na iniciativa «Festas nas Aldeias do Concelho», tendo logrado angariar 251$95 «para a benemérita obra do hospital» da Santa Casa da Misericórdia de Cascais. O respectivo «diploma de agradecimento», assinado pelo provedor, Padre Moisés da Silva, expõe-se no salão e reproduz-se no livro.

Uma identidade a preservar
            Referiu-se o «rio». E talvez não seja despropositado recordar a luta travada na Comunicação Social local, não há muito tempo, contra uma proposta de urbanização desse fértil vale a montante da povoação, onde há vestígios romanos, que viria descaracterizar por completo o ambiente dessas quintas seculares, onde, ainda hoje, se produz vinho de Carcavelos. Logrou-se a classificação dos plátanos seculares; conseguiu-se preservar e alindar a secular Fonte do Sapo. Nas tradicionais festas de S. Pedro era por aí que se desenrolava o piquenique. E há, de facto, que preservar esse local, pela sua beleza e simbolismo: repare-se que é na parede da casa junto à ponte que está a placa identificativa da povoação, ali mandada colocar pelo Automóvel Clube de Portugal, na primeira metade do século passado, a mostrar que era justamente ali a entrada ocidental da povoação.
            Aliás, a colectividade sempre exerceu também a função geralmente atribuída hoje a uma comissão de moradores. Foi à ‘sociedade’ que, por exemplo, se solicitou parecer sobre os nomes a dar aos arruamentos. E todos os domínios da Cultura e do recreio serviram, ao longo dos anos, para cimentar a união dos moradores: sessões de cinema ao ar livre; o tradicional Baile da Pinhata; os bailes de beneficência que alimentavam, nomeadamente, a Caixa de Auxílio aos Músicos, que ainda se logrou agora recuperar em casa de um dos sócios; o Grupo Cénico… Deveras interessante a referência ao espelho, destinado, dizia-se, a «controlar o movimento do salão», numa altura em que as mães se sentavam junto às paredes laterais e os pares rodopiavam sob a sua vigilância perspicaz…
            Um livro com muitas fotografias e de pessoas identificadas, o que particularmente me agradou, exactamente porque assim tem «pessoas dentro», num momento em que mais se fala de números que de pessoas e que mesmo o lema «Cascais elevada às pessoas» é frase a carecer de maior concretização efectiva.
            Registe-se, com aplauso, a preocupação em não deixar perder os arquivos das colectividades ou das entidades em geral e de os preservar e tratar. O arquivo desta colectividade deu entrada no Arquivo Municipal, cujos técnicos - competentes, afáveis, disponíveis - estão a levar a cabo, sob a mui eficiente direcção do Doutor João Miguel Henriques, um trabalho deveras meritório, a merecer encómio maior.
            Estão aqui pedaços de uma história centenária, pedaços de vida de antepassados nossos. E a publicação do livro contribuiu, não tenho dúvidas, para que a população de Caparide – a que tem aqui as suas raízes e a que, aos poucos, vinda de fora, se foi integrando nestes usos e costumes – sinta cada vez mais como sua a colectividade da sua terra. E continuem todos a lutar pelo bem-estar comum – na união que o livro muito contribui para cimentar.

Publicado em Cyberjornal, edição de 06-04-2014:

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