quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

12ª Grande Gala do Fado

             Fez dois anos, a 27 de Novembro, que o fado foi integrado pela UNESCO no rol das manifestações artísticas património imaterial da Humanidade.
            O fado – da palavra latina «fatum», ‘destino’ – formou-se a partir do contacto entre as tradições culturais e musicais africanas e brasileiras. Fruto dessa aculturação secular, constitui, pois, um património. E é atendendo a esse processo de formação – no mundo que o Português criou – que se assume também, na sua temática (a saudade, o amor, a melancolia da ausência e da partida…), como uma das tónicas dominantes do que poderíamos designar a «alma portuguesa» na sua singularidade.
            Para assinalar a efeméride e em homenagem ao cascalense Carlos Zel, prematuramente falecido, com 51 anos, a 14 de Fevereiro de 2002, fadista que mantinha, na altura, um programa de fado, às quartas-feiras, no Casino Estoril, realizou-se, nesse dia 27, a 12ª edição da “Grande Gala do Fado – Carlos Zel”.
            Registou enchente o Salão Preto e Prata, como nas grandes noites de há uns anos atrás! Jantar mui saboroso, de um discreto requinte, em que, por exemplo, o porco preto salpicado de ervas aromáticas fez ressaltar apetitoso regresso a uma ementa de cariz mediterrânico muito nosso.
            Apresentado por Branca Frazão, a viúva de Carlos Zel, o espectáculo abriu, às 23.10 h., com um magnífico ‘instrumental’, de certo modo para nos ambientar e familiarizar com o enorme virtuosismo dos músicos: Paulo Parreira, na guitarra portuguesa, prestigioso; Carlos Garcia, na viola (muito balançado, em ritmo, a noite toda); mais discreto, Marino de Freitas, na viola baixo.
            Às 23.15 h., elegante no seu vestido negro comprido, perlado de corolas vermelhas, cordão com coração de filigrana ao peito, longos cabelos negros a ondular-lhe sobre as costas: a jovem (n. 30-09-1982) Joana Amendoeira, escalabitana. Encantou nos quatro fados cantados – não anunciados, porém, a não ser o último, «Fado d’Outrora», um dos que Zel amiúde incluía nas suas actuações.
            23.30 h.: meio tímido, António Zambujo, da nova geração (Beja, 1975), vai cantar sentado. Convida a dar «uma voltinha na minha lambreta». «Pedaço de mau caminho / Onde é que eu tinha a cabeça / Quando te disse que sim?» – foi o «Flagrante», interpretado com voz macia pelo ‘melhor intérprete masculino de fado’ (Prémio Amália Rodrigues 2006). Fados? Talvez. Num sotaque que ressuma Brasil: regresso, afinal, das modas que, séculos atrás, de África e deste cantinho, ousámos levar para lá?
               23.45 h.: a esguia e alfacinha Aldina Duarte (22-07-1967), vestido negro até aos pés, de lantejoulas aqui e além, mangas largas caídas em jeito de estilizado xaile. A sua voz quente e cheia levou-nos pelo fado tradicional. Largo sorriso no fim de cada fado, grande concentração antes de os iniciar. «E os rios perdem o mar / e as pedras rolam de espanto» (Fado com Dono); «Espelho meu, diz a verdade da idade da saudade à mulher envelhecida!».
            Meia-noite: Rodrigo, embora alfacinha também (29-6-1941), é o fado de Cascais, vadio e fora de portas, ali para as bandas de Birre, a «praia» do Zel!... Veste casaco sobre camisola de gola; no peito, como é seu timbre, um cordão de ouro com pendente. Não hesita em falar antes e depois, dizendo de autores das letras e das músicas, em voz meio enrouquecida. Começa pelo «recado» de João Dias: «Que ninguém chore por mim / Na festa da minha morte». Prossegue, depois da «morena dos olhos verdes», com um dos seus preferidos: «É tão bom ser pequenino!». Conclui – não sem sublinhar «É hora de solidariedade, olhem para o vosso vizinho» – com o tradicional «Fado do fado».
            Meia-noite e um quarto: Ana Moura, outra escalabitana, da nova geração também (1979), alta e esguia deveras no seu vestido negro comprido, num rendilhado que pelos braços se prolonga, qual xaile numa saudade. Delicio-me com um dos seus fados meus preferidos: «Vestido negro cingido / Cabelo negro comprido / E negro xaile bordado. / Subindo à noite a avenida / Quem passa julga-a perdida / Mulher de vício e pecado» – a fadista. Trina a guitarra imponente. E… «Sou do fado»: tinha que ser!...
            Meia-noite e meia: João Ferreira Rosa (Lisboa, 16-02-1937). O veterano. De camisa negra, fralda de fora, calça preta, mãos nos bolsos. A tradição. «Ser fadista é triste sorte»… Ouvimo-lo, sentimo-lo, o tempo pára. Só o rosto tem expressão, quase imperturbável, porém. E, inevitavelmente, "O Embuçado" – que mui calorosamente aplaudimos!
            00.45 h.: Maria da Fé (Porto, 25-05-1942). De negro vestida; negra, a echarpe. «Valeu a pena». «Cantarei até que a voz me doa!». Em plena forma. O Fado castiço na sua melhor expressão.
            Saímos todos regalados pelo percurso intergeracional com que a produção do espectáculo nos brindou. A fazer-nos reviver galas de outrora e – porque não? – a magicar na secreta esperança de vermos, um dia destes, regressar a Cascais uma das suas mais lídimas tradições, deveras apreciada por residentes e forasteiros. Faz bem, claro, o Casino Estoril em nos instigar a sonhar!

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 25, 04-12-2013, p. 6.

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