terça-feira, 8 de outubro de 2013

«O Segredo Perdido», de Júlia Nery

            Graças à sua amizade, tenho acompanhado Júlia Nery desde que decidiu – e bem – partilhar a sua vida entre a docência e a escrita, em Cascais. Recordo o seu Pouca Terra… Poucá Terra… (1984); regozijo-me por ter conseguido que fosse Claire Cayron (a tradutora de Miguel Torga) a traduzir para francês o seu O Cônsul (1993). E ainda está fresco o Da Índia com Amor (2012) e já no horizonte mui louvavelmente se perfila o enigmático Prior do Crato, num incitamento ao estudo da História Pátria de que ora tanto se anda arredado entre nós.
            O Segredo Perdido, título que vem antecedido (ou seguido) de «Lisboa, Terramoto de 1755», foi editado pela Bertrand em Janeiro de 2005 (ISBN: 972-25-1392-3), na altura em que se comemoravam os 250 anos do cataclismo. Perdoar-se-me-á por só agora a ele me referir; contudo, mesmo com atraso, acho que será de interesse reflectirmos um pouco sobre o conteúdo desse romance histórico e o que de novo ele veio trazer-nos.
            Trata-se, no fundo, da história de um cofre, que andou de mão em mão desde o torvelinho do terramoto até cair, no dealbar do século XX, em usurária tenda de antiquário, onde uma jornalista (a autora) o descobre quase um século depois e verifica que, afinal, ele continha, escondidos, uma série de manuscritos, que lhe acirraram a curiosidade e a levaram a evocar as gentes que lhe estiveram ligadas:
            «Quando comecei a escrever, propunha-me seguir o percurso do cofre, entrando com ele pelas vidas e as épocas dos seus possuidores, assim como pelas “condicionantes” das suas vendas» (p. 183).
            No cofre se encontrava, pois, o segredo: as cartas. Não é este um romance histórico? E… História constrói-se com documentos! Eles aí estavam – a garantir a autenticidade de todo o enredo, alicerçado também, naturalmente, nas narrativas da época.
            Há, de permeio, uma ligação, querida à autora, aos judeus que, na acolhedora Lisboa da II Grande Guerra, por aqui passaram e jogaram no Casino do Estoril, em demanda do além-Atlântico: a venda do cofre ajudou a ressarcir dívidas de jogo e permitiu o pagamento da viagem, em Abril de 1942. E a jornalista tem os problemas destes primórdios do século XXI: depressões, altos e baixos… Entrelaçado com o drama de Beatriz, há, pois, o seu, atormentada como está pelo cancro da hipófise e pela separação de Walter.
            Júlia Nery, com base nas descrições da época, no que se sabe do eco enorme que o terramoto de Lisboa teve por esse mundo fora e, naturalmente, nas visões dos cataclismos de agora, traça um quadro realista do que foi o terramoto, os mortos, os sobreviventes, não fugindo também àquele realismo mágico (ai, aquela égua!...), de que, afinal, queiramos ou não, acabam por ser entretecidos os nossos dias, com tantos pormenores que nos escapam e que representam, sem disso amiúde nos apercebermos, essas ‘chamadas’ do Além… E serão os sobreviventes que prosseguirão na história.
            Descreve-se a reconstrução, as medidas tomadas; os violentos sermões do Padre Malagrida e, inclusive, ao pormenor, a sua morte a mando severo da Inquisição; o quotidiano das famílias nobres, seus negócios claros e obscuros, os amores furtivos: «Nocturnas escapadelas com destino certo a alcova de dona casada com marido protector ou ausente» (p. 57). Quem diria que o ódio dos Távoras ou aos Távoras andara envolto em reais enredos de saias!..

A sedução do convento
            Há muito que a vida conventual, o que lá enigmaticamente se passava ou passaria excita a imaginação alheia. Um olhar – também aqui, porque uma das personagens vai para freira e, naturalmente, contra a sua vontade… – que não será, porventura, estereotipado, ainda que se realce ser a vida em clausura resultante de malogrados amores, e sejam encarados os votos (de pobreza, castidade e obediência) numa óptica de imposições contra natura. Aliás, quiçá nesse horizonte – sempre aliciante porque, repito, estranho ao olhar comum – se encontrem ecos doutras leituras e será, decerto, óbvia a imediata evocação de Soror Mariana de Alcoforado e suas cartas de amor.
            É o delicioso fascínio exercido por aquela sempre demasiado pequena janela gradeada, elo subtil e único entre os dois mundos, o de fora e o de dentro, envoltos ambos – por um lado e por outro – em denso manto de intrigante mistério…
            Na p. 212 se desvenda o segredo: no convento, Beatriz recebe o cofre das mãos da madre e declara, na última carta:
            «Agora me pesam a revolta, a desobediência. Choro, pela saudade daquela Maria Antónia que eu era mas não me deixaram ser. […] Algumas páginas do meu diário e as nossas cartas guardará este cofre como única memória que de mim fica no mundo».
            Leitura acabada e recapitulação feita sobre a viagem pelo tempo empreendida: o drama de um amor impossível; o cofre de misterioso recheio que perpassa pelos séculos, de mão em mão…
            Plebeus, nobres e freiras… suas vidas, emoções, tormentas e favores desfilam, pois, por estas mais de 200 páginas, entrecruzando-se com a «Lisboa formosa» de 2000 a 2003.
            De capítulos curtos, não é leitura fácil de seguir, caso se não opte por ler tudo de carreirinha e assim se fixarem melhor os nomes e os relacionamentos das personagens envolvidas. Veja-se o índice: as 13 folhas do cofre mais as cartas de Beatriz e de Guilherme emolduram o capítulo fundamental «As vidas». E a narradora acaba por intrometer-se aqui e ali, não vá o leitor esquecer-se que é ela quem o guia por estas veredas da História, ela que também tem a sua história, tão dramática porventura como a das suas personagens: não constitui terramoto o mundo em que estamos obrigados a viver?
            «Passaram mais de dois anos desde o dia em que descobri o secreto do cofre e desdobrei na primeira folha de papel almaço, escrita a trinta violeta esmaecida, a história de Beatriz» (Janeiro do ano 2002, p. 210).

Frases que há a reter
            Sublinhei passagens a reter, dado que Júlia Nery, autora, tem no sangue a sua matriz de docente de Língua Portuguesa e, como tal, além de burilar a escrita, usa-a como veículo de reflexões outras, de mensagens que, em seu entender, devem obrigar o leitor a parar, quer para se extasiar com a beleza quer para voltar atrás e melhor observar, com olhar crítico, o mundo que o rodeia. Frases lapidares algumas, anotações singelas outras – mas sempre aureoladas de perspicácia a realçar:
            «Toma lugar na fila e encosta-se aos pensamentos que vieram a brincar na sua sombra» (p. 37).
            «São aqueles que mais sofrem quem menos odeia e melhor sabe perdoar» (/p. 41).
            «A gratidão dá frutos tão gostosos quanto o ódio destila mortíferos venenos» (p. 56).
            «A merda dos grandes às vezes é bom adubo na vida dos pequenos» (p. 57).
            «O conselho da moda: ter uma cómica por luxo, possuir uma dama por gosto, namorar uma freira por moda, casar com uma prima por amor» (p. 59).
            «Vida de pobre anda pelo mundo de jumento, sempre empaca no caminho, demorando ou não tendo tempo de chegar onde deseja. Não queiras tu, mulher, tocar o burro para a frente, pedindo-lhe pressas de corcel» (p. 62).
            «Seria pouco a pouco guardado num canto das suas afectividades, como se faz a um santinho de papel para marcar o salmo escolhido no missal» (p. 114).
            «Lisboa depressa odeia os que muito aclama» (p. 121).
            «É sempre contra vontade que mulher se despe de seus cabelos» (p. 143).
            «O homem engendrou angústias escusadas quando começou a dividir o tempo aos bocadinhos» (p. 167).
            «Tanto mais lenta é a mó moendo quanto seja fraco o vento e seco o rio que lhe dá força» (p. 210).
            «Aprendi que o grande sentido da vida é vivê-la» (p. 222).
            «[…] o êxtase do pôr do Sol, visão da morte para o renascimento, quando esta estrela se faz traço de união entre a terra e o mar» (p. 227).
            «Quero saborear a cidade prenhe de gente, a dádiva de harmonias deste tocador de ocarina encostado à austeridade granítica do prédio da esquina» (p. 228).
            «Espreito nas ruas estreitas do Bairro Alto intimidades a balouçar nas cordas da roupa» (p. 229).
            E por este Segredo Perdido também nós espreitámos intimidades!

Publicado em Cyberjornal, 08-10-2013:

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