sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

«Aristides de Sousa Mendes. Trinta Mil Vidas Humanas»

            Escreveu Júlia Nery o romance O Cônsul (1991), que viria a ser traduzido para língua francesa por Claire Cayron, sob o título La Résolution de Bordeaux (1993). Desde então se têm multiplicado as iniciativas para reabilitar a memória do cônsul Aristides de Sousa Mendes, que, contra as ordens expressas de Salazar, passou vistos aos milhares que demandavam o porto de Bordéus, a fim de fugirem à perseguição nazi. O Espaço dos Exílios, no Estoril, complementa o que se tem escrito, pois, como se sabe, muitos desses exilados por aqui passaram a caminho dos Estados Unidos.
            Coube agora a vez a Teresa Mascarenhas de retomar o tema, com o livro Aristides de Sousa Mendes. Trinta Mil Vidas Humanas (Edições Esgotadas, Viseu, 2012, 142 pág., ISBN: 978-989-8514-44-8), apresentado em Lisboa, a 15 de Janeiro de 2013, no Museu Nacional de Arqueologia, e que fora galardoado com menção honrosa no âmbito do Prémio Literário Florbela Espanca, promovido pelo Município de Vila Viçosa em 2011.
            Estreou-se a autora em 1990 com a obra Eu, Lourenço, Andarilho da Vida (Prémio Revelação da APE); em 1993, publicou Maria Benta, Filhas das Ervas, da Chuva, do Vento, também premiado; em 1995, Mozart Era um Extraterrestre. Na badana deste, declara: «Adoro receber os amigos, brincar com os cães e tratar da minha horta. Gosto de túlipas e de vinho verde. Fico feliz quando as pessoas gostam daquilo que escrevo. Detesto este mundo em que vivo. Qualquer dia vou-me embora». Significativamente, na quarta capa deste Mozart, vem o texto «Notas sobre a autora», escrito em caracteres wingdings maiúsculos, que não tem qualquer sentido, pois que se trata da sequência desses caracteres no teclado do computador. Uma forma, portanto, de se esconder num enigma…
            Aristides de Sousa Mendes – Trinta Mil Vidas Humanas não é apenas a história, mais ou menos romanceada, de um cônsul cuja assinatura autenticada salvou vidas. Sim, é a história dele e da família, e das famílias que logrou salvar – ou não, porque muitas ficaram pelo caminho entre Paris e Bordéus. Mas é uma história especial, que o subtítulo mui subtilmente acentua: Trinta Mil Vidas Humanas. Claro que o número é avassalador: 30 000 é muita gente, embora o nosso coração empedernido pelos noticiários já se não comova hoje com os milhares que continuam a morrer na Síria, com o horror fanático dos homens-bomba… 30 000 era muita gente. Foi muita gente. Mas, mais do que no número, o acento é posto no que vem a seguir: Vidas Humanas… Vida é existência, é sonho, é perspectiva de futuro, é comunhão com uma família, uma comunidade… Humanas, por seu turno, diz-nos respeito: somos nós! «Homo sum, humani nihil alienum», «Sou homem e nada do que é humano me é alheio», sentenciou o escritor romano Terêncio. E é verdade – tem de ser verdade, por mais que os grupos económicos que a todos nos governam insistam em tratar-nos como números. Aliás, ainda que este livro de Teresa Mascarenhas se insira numa perspectiva prenhe de actualidade no tema em si e no sadio movimento de recuperar e redimir a memória de quem tanto veio a sofrer por ter ousado desobedecer, ele é prenhe de actualidade também porque nessa luta estamos: queremos ser tratados como pessoas! Uma mensagem clara, oportuna, importuna – mas que não podemos calar!
            E ao acompanharmos pessoas, famílias, gente, povo, no seu martirizado peregrinar, na sua desesperada fuga a um totalitarismo cego (como o são todos os totalitarismos), que só tem como fito a destruição – esse acompanhamento soa-nos agora – mesmo agora! – bem presente. Fere-nos a pele, acicata-nos a mente, atira-nos para a depressão. Como, fuzilados sem dó nem piedade, eles eram atirados para a vala comum. Horrores de então? Horrores de hoje!
            Por isso, o livro de Teresa Mascarenhas não deixa de ser mais um libelo. Grito de alerta. Mais um!
          Por isso, a gente pega nele e não despega! A leitura inebria-nos, não nos deixa sossegados, é preciso ler mais, saber o que aconteceu. Vão salvar-se? Escapou ou não? Terão ainda forças? Crianças, pais, avós, mulheres… E os aviões. E o comboio que nunca mais chega ou que já não tem carris para prosseguir. E mais um incêndio além. Deixar-me-ão cavar a sepultura dela, cumprir o ritual?...
            Andamos por Paris, Bruxelas, Varsóvia, ruas esconsas, caves, esconderijos inauditos… mas é Bordéus o coração de tudo:
            «Aristides de Sousa Mendes pagou muito caro pelo seu sentido de humanidade. Salazar não o mandou prender, mas condenou-o a uma velhice vivida na mais triste pobreza. Viu-se obrigado a recorrer, com toda a sua família, à sopa dos pobres. Os filhos, um a um, impossibilitados de construir um futuro em Portugal, foram emigrando, e por fim o heróico cônsul morreu só, no Hospital da Ordem Terceira de S. Francisco. Não tendo à época um único fato decente com que pudesse ser sepultado, vestiram-lhe um hábito de Franciscano, e assim desceu à sepultura».
            Esta é a nota final do romance. Dever cumprido, castigo aplicado, a evocar quase heroísmo de mártires estraçalhados na arena dos anfiteatros romanos para supremo gáudio da populaça sedenta de sangue.
E por aqui me poderia quedar, pois cumprido está, creio, o dever de que me incumbi: aliciar à leitura do romance, do drama, da história… que tudo isso aqui visceralmente se mescla.
            Que me seja permitido, porém, transcrever parte mínima de um diálogo:
            – Pai, quantas estrelas há no céu?
            – Não sei. Acho que deve haver uma para cada um de nós.
            – Então, qual é a minha?
            – A tua estrela?
         – Sim. O avô contou-me sobre o Rei David e a sua estrela… e eu chamo-me David, por isso também tenho de ter uma estrela; mas, no meio de tantas, como é que posso saber qual é a minha?
            – Ah! A Estrela de David! Bom, eu acho que podes ser tu a escolher aquela de que gostares mais. Será essa a tua estrela.
            David apontou para o céu.
            – Pode ser aquela grande, brilhante?
            – Sim, claro, a partir de agora é tua!».
            Foi bem difícil a «resolução de Bordéus». Teresa Mascarenhas expressa-o com grande intensidade, ao retratar toda a imensa dúvida do cônsul horas antes de tomar a decisão: «Eu vou ajudar estas pessoas. Não é justo que morram, porque lhes falta… uma assinatura sobre uma folha de papel. Eu sei que Deus não me fez responsável pela vida dos meus irmãos. E todos os seres humanos são meus irmãos. Mas se eu permitir que eles morram, se não os salvar, serei verdadeiramente culpado pela morte deles».
            «Não tendo à época um único fato decente com que pudesse ser sepultado, vestiram-lhe um hábito de Franciscano, e assim desceu à sepultura». É verdade. Foi verdade. Trinta Mil Vidas Humanas será mais uma frechada no monstro do totalitarismo reinante. Oxalá o mate de vez. Sem dó nem piedade!
                                                                                           


            

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