quarta-feira, 6 de junho de 2012

Apresentação de novo visual para o mercado: pirosa e deficiente

            Diga-se, desde já, que serei «velho do Restelo», «bota-de-elástico». Aceito os apodos e espero ter oportunidade de me demonstrarem que errei.
            E explico: o mercado saloio vive da espontaneidade, da vizinhança, das vendedeiras e vendedores que, há anos, se conhecem pelo nome, sem necessidade de uniformizantes placas identificativas como nos supermercados (onde os contratos a prazo mudam os empregados como quem muda de camisa…); sem necessidade de etiquetas nos produtos; todos vestidos à saloia, sem necessidade de uniformes – e lembrei-me logo das estátuas funerárias perfiladas, todas iguais e uniformizadas que se mostram no Buddha Eden, ali na Quinta dos Loridos (Carvalhal), Deus me perdoe!...
            Fui à apresentação, e, portanto, não partilho da euforia oficialmente veiculada. Cheguei atrasado à sessão. Vi, porém, a passadeira vermelha para os VIPs (será que fecharam a outra entrada nascente, bem adequada para o efeito?), passadeira bordejada de velas tremeluzindo (a recordar que estávamos em noite de Senhora de Fátima ou em cerimonial de Iemanjá, seria?), guardada por duas meninas das Relações Públicas e, por perto, dois guarda-costas. É a primeira vez que vejo guarda-costas em iniciativas da Câmara; deve ser moda ou a Polícia Municipal estaria noutras funções. Uma multidão acotovelava-se, dizia impropérios contra a organização, porque alguém estava a tocar, mas não se via nada e, na torre, insistentemente, constantemente, repetidamente, passavam as imagens do que iria ser o novo visual do mercado. Lembro-me da etiqueta duma Carolina, toda contente… E havia dois holofotes a bailar na entrada, como naquelas festas dos clubes nocturnos. A gente punha-se em bicos de pés. Se calhar, os músicos estavam lá adiante, em frente dos felizardos (uns 200?) que tinham conseguido cadeiras. A multidão acotovelava-se, «com licença»... E veio alguém dizer que uma garrafinha de água, por ordem da Câmara, custava um euro e meio, e uma bica um euro, também por ordem da Câmara, que mandara afixar os preços, para ser tudo igual. Fôramos pela Carminho. A noite de 12 de Maio estava uma delícia de temperatura e de amenidade. Mesmo de encomenda para fados numa voz vibrante e jovem e far-se-ia silêncio quando ela começasse. Demorou a começar e muita gente abalou antes, rogando pragas à organização, decerto inexperiente nestas andanças (opinava-se). Quando sentimos que Carminho iria entrar em palco (eu digo ‘palco’, mas não cheguei a ver se havia, pois cá de traz não se enxergava nada!), todos pensámos: agora a publicidade à nova imagem desaparece e as câmaras põem-se diante da fadista e nós, cá ao fundo, e os que estão lá fora vêem a menina projectada na torre, ouvem-na melhor e… «silêncio que se vai cantar o fado!»… Nada disso! No mesmo ritmo frenético, as imagens continuaram; havia tentativas de se ver se Carminho vinha de preto ou de vermelho; as vozes de indignação impediam uma audição perfeita e estou convicto de que, apesar de se ter declarado muito contente por estar ali a actuar, Carminho gostaria de ter tido um público mais atento e silencioso. O Sr. Presidente ainda veio até à porta, antes do fado, e os circunstantes aproveitaram para lhe dizer do seu descontentamento, falarem da pirosice da passadeira vermelha e das velinhas, da falta de visão de quem terá sido pago para organizar o ‘evento’. Todos nos interrogávamos como era possível isto estar a passar-se em Cascais…
            Carminho quase nos ia apaziguando, no final, cantando para além de uma hora, na voz doce e profunda que muito lhe admiramos. E esperamos que volte, noutro cenário.
Nota:
Este apontamento foi preparado a 19 de Maio para ser publicado na edição seguinte do Jornal de Cascais. Entretanto, de semanário, o jornal passou a quinzenário e o texto acabaria por perder actualidade. Preferi, pois, publicá-lo aqui, pois considero meu dever dar conta do que foi a minha reacção nessa noite de 12 de Maio, até porque se preparam festejos populares no mesmo cenário e eu gostaria que os inconvenientes de então não voltassem a fazer-se sentir.

1 comentário:

  1. EXACTAMENTE ( assim mesmo "aos gritos" ) aquilo que pensei na mesmissima noite! Parabéns pelo espirito critico e capacidade de análise.

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