segunda-feira, 26 de março de 2012

A revista municipal que falta

Por diversas vezes tenho chamado a atenção dos responsáveis para o que, em meu entender, constitui uma falha na política cultural da Câmara Municipal de Cascais: a não-existência de uma revista de carácter cultural e científico. Permita-se-me, pois, que explicite agora o meu pensamento, historiando um pouco o que se passou até ao momento.

O boletim do museu
Por iniciativa de Maria Alice Beaumont, uma conservadora de largos horizontes, publicou-se, em 1971, o Boletim nº 2 do Museu-Biblioteca do Conde de Castro Guimarães, dando continuidade a um projecto que a clarividência de Branquinho da Fonseca iniciara em 1943. Aí se fez, desde logo, não apenas o ponto da situação em relação ao acervo do museu e da sua história como também em relação a estudos singulares a que, entretanto, se havia lançado mão, do ponto de vista da Arqueologia, por exemplo.
A publicação não teve seguimento.

Arquivo de Cascais
Sob a presidência de Carlos Rosa, sendo vereador da Cultura António de Sousa Lara, surgiu, em 1980, Arquivo de Cascais, como «Boletim Cultural do Município». Na apresentação, escreveu o presidente:
«É o nosso Município extraordinariamente rico em valores de ordem histórica e cultural cuja pesquisa e divulgação justificariam, por si só, a criação de uma publicação deste tipo».
E foca Carlos Rosa um aspecto que, à altura, poderia ser considerado pioneiro, pois que se refere a «uma outra riqueza não menos importante» do concelho: «uma população que, além de muito numerosa, apresenta característica de profunda heterogeneidade, a qual traduz, só por si, fenómenos sociais oriundas de diversos meios, desde o rural, ainda predominante em algumas zonas do Concelho, até ao densamente povoado, como o da sua faixa litoral».
E acrescenta que esse é um «conjunto de factores que importa, enquanto for tempo, recolher e conservar para as gerações futuras, no sentido de que a história de uma comunidade e a consideração dos seus valores específicos não poderão deixar de interessar não só aos actuais munícipes […] como aos futuros, a quem deve ser deixada a possibilidade de riem a ter elementos sobre as origens do meio em que se movimentarem».
Sábias palavras estas!
E o Arquivo de Cascais prosseguiu sua caminhada. O 2º volume (1981) foi integralmente constituído por «Personagens da Nossa Terra», o volume II de Cascais Menino, de Pedro Falcão. O nº 12 (1996) teve coordenação de Ricardo António Alves, chefe de Divisão do Património Histórico-cultural, sendo o vereador José Jorge Letria o responsável pela edição e que aí escreve, sob o título «História local, Memória viva»:
«Uma significativa parcela da memória deste concelho, enquanto comunidade e espaço plural onde a vida e a História se cumprem, encontra-se registada nos 12 números do ARQUIVO DE CASCAIS, que regularmente dá voz a investigadores desta terra que escrevem acerca dela, dos seus costumes, das suas tradições, do seu património edificado e das suas figuras históricas mais relevantes».
E conclui:
«O ARQUIVO DE CASCAIS é uma memória viva e dinâmica e honra e estimula quem a conhece e divulga. Por isso o publicamos, conscientes da sua importância e valor da herança de História local que ele deixará para o próximo milénio».
Mas… ficou-se por aqui. Diz-se que um desentendimento – que levou à saída de Ricardo Alves para a Câmara de Sintra, donde viera – provocou a suspensão da publicação, que viria a ser retomada já no tempo do presidente António Capucho (nº 13, 2005), sob responsabilidade da vereadora Ana Clara Justino, com textos do maior interesse, tendo-se salientado o seu papel como veículo de «estudos especializados sobre temas de História Local e Regional». E, mais uma vez, ficou-se por aqui.

Boca do Inferno
Homem, porém, mais ligado às Letras e às Artes do que à investigação histórica e às problemáticas do Património, José Jorge Letria acabaria por criar uma outra revista, Boca do Inferno, «de Cultura e Pensamento», cujo 1º número sai em 1996.
Haviam-se criado as «Conversas de Cascais», os Cursos Internacionais de Verão (cujas actas, em vários volumes, foram sendo publicadas) e o vereador considerou que, em Cascais, «a literatura, o debate de ideias, a cultura e as reflexões que ela suscita e reclama têm tido um papel relevante». E Boca do Inferno nasce para isso: «Um espaço aberto e plural para a literatura, o pensamento filosófico, a investigação histórica e confrontação de distintas visões da vida e do destino do Homem». Ou seja: era uma revista local, mas a sua dimensão não devia ficar «condicionada pela estreiteza das visões regionalistas ou bairristas». Em suma: perdeu-se pelas literaturas… E o carácter local acabaria por dissolver-se, como pode ver-se nos sumários das revistas seguintes. O último número publicado (9, Março 2004) só tem um texto directamente relacionado com Cascais: «Cascais e os primórdios do Cinema em Portugal», de José de Matos-Cruz.
Não nego o interesse de Boca do Inferno. Continuo, no entanto, a considerar que Arquivo de Cascais é um projecto a não perder. Mormente hoje que é possível fazer uma revista on line e apenas imprimir um número reduzido de exemplares, para oferta e/ou permuta.

[Publicado no Jornal de Cascais, nº 306, 21-03-2012, p. 6].

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