terça-feira, 2 de agosto de 2011

Flagrantes do quotidiano

Uma rubrica que sempre me encantou nas Selecções do Reader’s Digest desde a juventude foi «Flagrantes da vida real», em que se contam casos singulares e, normalmente, com piada. Quiçá seja por isso que privilegio à ficção a realidade minha envolvente – que, amiúde, também essa realidade assume tonalidades tais que mais parece ficção, a ponto de nos interrogarmos: «Será que eu estou a ver bem?».
Surgiu-me essa dúvida quando analisei o tijolo romano achado no decorrer das escavações dirigidas por José Beleza Moreira na cidade de Eburobrittium (a antecessora de Óbidos). Partido em dois pedaços, mas completo, ostentava inscrição estranhíssima, fora de todos os cânones conhecidos. E nem se chegava a compreender se os rabiscos (assim me pareciam) formariam frase completa. Virei e revirei.
Cheguei a pensar em letras mágicas gravadas diante dum espelho, invertidas. Podia ser nome de pessoa, o que era normal: quantas vezes não nos apeteceu deixar marca da nossa passagem aqui e além (até nas colunas de monumentos célebres!...), gravando o nosso nome e a data?!
Ná! Ali havia números, parecia; mas os romanos não escreviam as datas assim! E nome não se me afigurou haver algum com aquelas letras estranhas…
Decidi-me, pois, pelo método por onde, aliás, deveria ter começado: identificar cada uma das letras e ir escrevendo num papel. VSQ estava claro; dois II em grafitos equivalem geralmente ao E, mais difícil de gravar com barras na pasta ainda mole. Estranhos, os três CCC da segunda linha: seria 300? Mais estranho ainda o rabisco de cima: o C final podia não oferecer dúvidas; mas… antes? A hipótese de um H era verosímil: teríamos HC. Ora, vendo melhor, usque quer dizer «até»; nesse caso, no prolongamento da segunda haste do H poderia estar um I – e tínhamos a palavra «hic», ‘aqui’!
Ficou, pois, decifrado o enigma: o operário estava a contar os tijolos antes de os pôr no forno; com medo de se enganar, chegou a este e escreveu: «Até aqui, 300!».
Quanto sei, não se encontrou ainda outro paralelo no mundo romano. Virá a identificar-se, decerto. Mas este flagrante da vida real de há dois mil anos atrás, além de nos provar que em Eburobrittium havia uma olaria, permite-nos imaginar o cansaço do trabalhador: «Espera aí, deixa-me escrever o conto, antes que me esqueça!».

Publicado no quinzenário Renascimento [Mangualde], nº 574, 15-07-2011, p. 13

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