sexta-feira, 18 de março de 2011

Os marcos do Tibre

Amiúde se plantam as cidades nas margens dos rios. Cresce o casario de um lado e doutro; fazem-se as pontes e, por vezes, ao manancial se deixa apenas estreita passagem, quando não se pensa que o melhor é mesmo canalizá-lo subterraneamente para a urbe ganhar espaço!...
Esse ganho, porém, já hoje não ganha muitos adeptos, cientes, como estamos todos, de dois aspectos fundamentais: primeiro, a Natureza tem as suas regras, as águas carecem de se espraiar quando abundam; depois, ver a água fluir e nelas vicejar vegetação e usufruir doutra vida a fauna que a povoa está a ser, cada vez mais, o sadio pulmão aonde apetece ir, onde apetece sentarmo-nos… Já não sei onde foi e não tenho os contornos todos da história, mas contou-nos Jorge Paiva, numa das suas lições, que um ancião mandara fazer um banco e o legara à cidade, com uma mensagem: a da felicidade que ali tivera oportunidade de viver, sentado, a ver o riacho que passava perto, as crianças a brincar no parque envolvente da linha de água…
O leito de cheia, área non aedificandi!... Quantas vezes não vociferamos contra os ataques que lhe são feitos, no momento em que as imagens da televisão nos mostram desgraças das cheias e inundações em meio urbano!... E estudávamos nós as cheias do Nilo e os seus benefícios! E eram normais para o homem da lezíria ribatejana as inundações invernais fertilizantes da sementeira a fazer!...

As preocupações do imperador Augusto
Recordado – que a tradição lho contara – das inovações cedo introduzidas pelos Etruscos nas terras do Lácio, Augusto não menosprezou a segurança de pessoas e bens no que concerne ao eventual mau uso do leito do Tibre.
Isso mesmo nos conta Suetónio:
«Para evitar as inundações, mandou alargar e dragar o leito do Tibre há muito cheio de escombros e apertado pela extensão dos edifícios».
O problema, aliás, já vinha de longe, como H. Thédenat nos refere, na extensa e bem estruturada entrada «Curatores Alvei Tiberis et Riparum et Cloacarum Urbis» do clássico Dictionnaire des Antiquités Grecques et Romaines, de Daremberg et Saglio (p. 1623-1625): houve uma inundação em 34 a. C., que devastou Roma, e, por isso, os censores Messala e P. Servilius Isauricus procederam à delimitação das margens, ex senatus consulto. No ano 8 a. C., os cônsules G. Asinius Gallus e C. Marcius Censorinus tiveram idêntica actuação; e o imperador Augusto, no ano seguinte, ou fez nova delimitação ou completou a que pelos cônsules fora iniciada.

É dessa intervenção que dá conta o marco hoje seleccionado (Fig. 1) para documentarmos, em continuidade, o papel que os monumentos epigráficos podem desempenhar como elementos didácticos.

Desdobradas siglas e abreviaturas, o texto (Fig. 2) reza o seguinte:

IMP(erator) • CAESAR • DIVI • F(ilius) / AVGVSTVS / PONTIFEX • MAXIMVS / TRIBVNIC(ia) • POTEST(ate) • XVII (decima septima) / EX • S(enatus) • C(onsulto) • TERMINAVIT // R(ecta) • R(egione) • PROX(imus) • CIPPVS • PED(ibus) • CCXIX (ducenti et undeviginti).

Ou seja:
«O imperador César Augusto, filho do Divino, pontífice máximo, no seu 17º poder tribunício, por senátus-consulto, delimitou. Em linha recta, o próximo cipo a 219 pés».

Serve o texto, como facilmente se depreende, para inúmeras reflexões, quer do ponto de vista dos conceitos que nele se exprimem quer pelo cuidado posto na execução do empreendimento, pois se indica claramente que o próximo marco (cippus) se encontra a 219 pés, isto é, se consideramos o pé equivalente a 29,6 cm, teremos uma distância de 64,824 metros, frequência que dá bem a medida da importância dessa marcação.
Detenhamo-nos, por agora, em três pontos.

a) Augustus
Vem este nome por extenso e ocupa uma linha, centrado – a significar o relevo que se lhe atribui.
Nem sempre se consciencializa que o adjectivo – pois que de adjectivo inicialmente se trata, assumido depois como nome próprio – vem do verbo augere, «aumentar». Augustus é, pois, aquele que detém em si a capacidade de aumentar, de trazer benefícios, prosperidade. Augusto é o contrário de angusto, donde vem a palavra angústia… Há, por consequência, aqui uma conotação positiva do maior alcance e não foi por mero acaso que o imperador a esse nome se referiu nas suas Res Gestae:
«No meu sexto e sétimo consulados, depois de ter extinguido a guerra civil, e de ter assumido, por consenso universal, o poder supremo, passei a República do meu poder para o arbítrio do Senado e do Povo Romano. Por esse motivo, e para me honrar, recebi o título de Augusto por decisão do Senado».

b) Pontifex maximus
Também por extenso e também isolado numa linha. Se Augustus traz já implícita uma certa noção de outros poderes, fora do comum, a função de sumo pontífice, de intermediário privilegiado entre os deuses e os homens mais corrobora tal carisma. De resto, também neste caso o imperador não quis omitir um testemunho para a posteridade:
«Recusei ser nomeado pontífice máximo, em lugar do meu colega, ainda vivo, quando o povo me outorgava o sacerdócio que o meu pai exercera».
Atitude política essa recusa, aqui referida em jeito de auto-elogio, mas que consubstancia, no fundo, o significado maior que o exercício destas funções detém. Sim, é para dar cumprimento a uma decisão do Senado que manda colocar este marco; contudo, o poder que dele emana não é apenas derivado de mero acto administrativo dos homens: está impregnado de uma religiosidade, que o autentica e sacraliza, determinando punição humana e também divina para quem tal determinação violar.

c) O poder tribunício
Regressemos de novo às Res Gestae:
«As acções que o Senado então quis que eu executasse, cumpri-as por efeito do meu poder de tribuno, poder esse para o qual eu mesmo solicitei cinco vezes do Senado um colega».
E a epígrafe documenta cabalmente esta determinação: o imperador executa não apenas a mando do Senado (ex senatus consulto – expressão que vem em sigla, por ser já corrente na linguagem quotidiana), mas também porque detém a tribunicia potestas! Traduzimos potestas por ‘poder’, mas sentimos que melhor seria uma tradução à letra: é potestade mesmo! Um poder sobre-humano, que lhe é transmitido por uma força estranha, pois não é impunemente que os tribunos gozam de imunidade, diríamos que são intocáveis! E recordamos, forçosamente, a invocação que Camões põe na boca de Vasco da Gama, quando dele se aproxima o Adamastor: «Ó potestade, disse, sublimada» (Os Lusíadas, canto V, 38)…
Era, na verdade, por anualmente lhe ser outorgado o tribunado – no dia de aniversário da sua tomada de posse – que o imperador podia legislar. Daqui que o número dessas atribuições seja para nós elemento fundamental de datação duma epígrafe imperial. Neste caso, estamos perante o poder tribunício a ser exercido pela 17ª vez; como Augusto, teve o 1º poder tribunício a 1 de Julho do ano 23 a. C., esta epígrafe data-se de entre 1 de Julho de 7 a. C. e 30 Junho do ano 6.


Publicado no Boletim de Estudos Clássicos, Coimbra, Dezembro de 2010, p. 71-75. [ O texto integral tem notas e pode ser consultado em http://hdl.handle.net/10316/14703 ]

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