quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Dos ecos ressuscitados


Era, de facto, assim.
Ao longo dos meses. O ritmo doloroso mas sereno de uma existência frugal, atenta aos sinais do céu, leitora sapiente dos escritos na paisagem. Paisagem moldada pelo suor do Homem, no caminhar persistente – que já vem perto o ritual das sementeiras, das colheitas, das desfolhadas… como reza o Borda d’Água…
Vida ritual, sem dúvida, pautada pelos adágios séculos afora consolidados, na experiência das gentes…
Aninha-se a aldeia da Barriosa no regaço de duas serras beirãs, a da Estrela e a do Açor. Tem a bonita cascata do Poço da Broca; teve lagares, eiras, moinhos… E vai perdendo gente.
É Barriosa concreta, de pessoas concretas, com nome e idade (tinha Antoninho do Fôjo 99 anos…), e histórias vividas («Um dia de Maio pela manhã, indo um rapaz com a charrua às costas para o campo, encontrou uma moça do seu agrado…»). Mas será também – quiçá sobretudo – uma Barriosa-símbolo, cantiga de vida cujos ecos aqui se ressuscitam, se transmitem, se querem erguer altaneiros em certeiro anátema contra o «mutismo de um dia passado à frente do pequeno ecrã» globalizante, uniformizador, castrante… Um símbolo, ele também!
«Velho que morre, biblioteca que arde», escreveu o etnólogo do Mali, Amadou Hampâté Bâ. Este, porém, quer ser o livro que ousou escapar ao incêndio, dele corajosamente arrebatado pelas mãos de quem soube ouvir, se dispôs a escutar e os pormenores cuidadosamente anotou, para que não viessem a perder-se. Para que houvesse memória e, com ela, identidade!
Já se esqueceram os adágios? Já não há o tapador da levada nem o “mestre barbeiro” que cuidava da saúde aos moradores? O sol a pôr-se no Monte do Colcurinho, «a 1244 metros de altitude, já não marca, como o fazia outrora, a hora de regresso dos campos»? Já as torgas não crepitam nas fogueiras? Já o sino não repica como dantes? Já tudo desarvorou para a cidade anónima e… sem terra?...
João Orlindo conta como foi: já não, já não, já não… O panorama do que deixou de existir, sim; relembrado aqui, corre todavia sério risco de poder ressuscitar.
Oxalá!

[Prefácio a João Orlindo MARQUES, Esta Vida é uma Cantiga! (Ocasos do viver numa aldeia serrana), Apenas Livros, Lisboa, 2010, p. 3].

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