domingo, 13 de junho de 2010

«Deserto, deserto»


Terminou no domingo, 30, com a presença do autor do texto, o francês Jean-Pierre Renault, a apresentação, pelo Teatro Experimental de Cascais, da peça «Deserto, Deserto». Gostaria, naturalmente, de a ela ter aludido durante o tempo em que esteve em cena, pois, assim, poderia animar o leitor a não perder mais esta oportunidade de ver como Carlos Avilez, depois de longa maturação – «Durante anos esperei para concretizar este projecto considerado irrepresentável pelo autor» –, mais uma vez nos surpreende: na concepção das personagens e, sobretudo, no ambiente, um verdadeiro areal (é deserto!...), em que as faz movimentar.
Miguel Graça, no programa, interroga-se sobre se estaremos em presença de uma comédia ou, de preferência, de uma «tragédia cómica». Na verdade, o que ali se revive, em magistrais interpretações, pela boca de seis actores cómicos redivivos – Totó (António Marques), Pamplinas (Sérgio Silva), Harpo Marx (Paulo B.), Jacques Tati (Luiz Rizo), Karl Valentin (Santos Manuel), Lies Karstadt [«Liza»] (Anna Paula) –, são as suas angústias, os momentos de glória, recordações… Como se, mortos há muito, lhes apetecesse continuar entre os vivos…
E o deserto presta-se para isso, porque, como se sabe, quando a noite cai, há animais que saem das tocas e dão acordo de si, mostrando que, afinal, deserto não é morte eterna, não! Há, ali, uma vida subjacente – e os actores metem-se em tocas e de lá nos falam, como se em sepulturas estivessem. E até, depois, aparece um menino (Diogo Carmona), que os ouve, numa admiração, sem saber exactamente quem são as personagens estranhas, que nem falam com lógica – porque, se calhar, acabaram por verificar que não há lógica possível numa existência como foi a deles, como o é a nossa…
E aos dias sucedem-se as noites. Sete, ao todo – como os dias da criação do mundo (diz-se!...). Quando a cortina corre, vêm as desejadas palmas, sim, mas cada um de nós leva para casa essa imagem de alguéns que foram e já não são. Ou será que continuam a ser? E essa é uma representação fictícia ou um retrato verdadeiro dos actores que todos somos no palco da vida?
Gostaríamos de conhecer mais, de poder pensar melhor. No programa vem a vida atribulada de cada um dos seis actores. Todos da 1ª metade do século XX. E ficamos a saber que Jean-Pierre Renault escreveu a peça «em 1988 na primeira noite de uma residência artística de quatro meses na Cartuxa de Villeneuve lez Avignon». Começara o seu retiro e arrastava consigo, sem dúvida, todas as angústias existenciais de que esperava ali libertar-se. «Deserto, Deserto» foi o primeiro impulso dessa libertação!

Publicado em Jornal de Cascais, nº 223, 08-06-2010, p. 6.

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