segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

«Na qualidade de falecido»

Se de algo a avalanche de mensagens que diariamente nos atolam a caixa do correio electrónico nos pode servir é para irmos tomando consciência, pouco a pouco, de como falta quem detenha, pelas funções que exerce, poder de decisão, quando entra pelos olhos adentro que o usual procedimento não tem ponta por onde se lhe pegue.
São às miríades os casos que todos os dias se apontam, de verdadeira estupidez, porque cegamente se cumprem as regras e… ai de quem as não cumpra!
Correu, há muito, cópia do ofício 839018, de 29-03-2006 (processo 436/05.GALGS), em que, tendo como assunto ‘notificação’, se escreveu o seguinte:
«Notifica-se V. Exª., na qualidade de Falecido, nos termos e para os efeitos a seguir mencionados:
Para no prazo de 10 dias, vir aos presentes autos, levantar a certidão requerida».
Assina: «O Oficial de Justiça».
Exacto: a pontuação e a paginação são precisamente as que se indicam. Ou seja: há, na Unidade de Apoio dos Serviços do Ministério Público de Lagos, uma minuta – como há por todo o sítio – que o oficial de justiça se limita a preencher com os novos dados, sem minimamente se importar se a frase tem sentido e se está a fazer algo que tenha pés e cabeça. Trata-se, no caso em apreço, como numa coluna se diz, de um ‘inquérito’ e o ofício é dirigido ao «Legal Representante da Companhia de Seguros AXA», de Faro.
Claro que o documento, devidamente digitalizado, correu por aí, por tudo quanto era blogue e sobre ele se teceram os mais curiosos comentários. Basta pôr, num motor de busca, a frase «na qualidade de Falecido» e fica-se logo com uma ideia do gozo que tudo isso gerou:
– «Somos todos doidos?»
– «Afinal, vamos e voltamos».
– Olha, Jaquim, hoje na te trago flores, home. Trago só um papel do tribunal, diz qu'é p'ra ires lá daqui a dez dias levantar uma…».
– «Em Lagos, fala-se com os mortos».
– O «Parceiro Pensador» pensou: «O que eu me pergunto é onde estava a cabecinha da pessoa que dactilografou e assinou esta peça».
– E, a 18 de Outubro, p. p., um despacho da Lusa anunciava o livro de Sofia Pinto Coelho «As Extraordinárias Aventuras da Justiça Portuguesa»…
A questão prende-se não apenas com o facto de expressamente se convocar um morto, mas, sobretudo, com a falta de formação que é dada aos funcionários! Evidentemente que, neste caso, há um espaço depois de «na qualidade de», que é para pôr «réu», «queixoso», «testemunha»… E a oficial, coitada, ao convocar alguém da companhia de seguros em que estava o homem que morreu olhou para a parede, olhou para o papel, perguntou ao colega e… «Então o homem não morreu? Portanto, é falecido, não é testemunha nem réu nem… nada! É falecido, pronto!...».
Por outro lado, como se vê, ninguém ensinou como é que uma frase se combina com a outra. É o que antigamente chamávamos a «chapa», ou seja, respondia-se sempre da mesma forma a um requerimento, a um pedido de subsídio… Aquilo já estava tudo com pontos e vírgulas, quer fosse para tratar de um burro à solta como de uma criança em risco. “Qual é, chefe?” – “Chapa 6!”.
Claro que está lá a menção do processo e a seguradora sabia quem era o falecido e até, habituada como está a este palavreado, lá terá ido o seu ‘legal representante’, sem fazer ondas, levantar a certidão que requerera. Sim, porque quem requereu foi a seguradora e não o defunto como vem no texto.
Tudo se terá resolvido e o «Oficial de Justiça» – que talvez até nem saiba que o seu nome correu Ceca e Meca e vales de Santarém e andou pelas ruas da amargura!… – limitou-se a entregar a certidão e o Ti Jaquim não precisou mesmo de se alevantar da campa, pois que o «legal representante» foi lá, em tempo oportuno. Se calhar, até por esses Serviços terá havido um certo sururu de incompreensão: «Raios partam estes gajos dos blogues e da Comunicação Social, sempre na coscuvilhice! O assunto resolveu-se, não se resolveu? Então, pronto! Tá resolvido!».
Resolvido poderá estar, sem dúvida; mas acabamos sempre por perguntar: «Estes senhores – os chefes e os subordinados – não terão feito o que nós chamávamos a ‘Instrução Primária’? E ninguém na vida lhes ensinou a pensar?»…
– Desculpe lá, amigo! Quer ir hoje ver comigo o Benfica? Sempre desanuvia um pouco…


Publicado no Jornal de Cascais, nº 207, 16-02-2010, p. 6.

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